Há cerca de quatro meses os santamarenses do bairro do Bonfim acordaram com as paredes de suas casas, muros e estabelecimentos comerciais pichados com a sigla do Bonde do Maluco (BDM) sobre as iniciais do TPC. De acordo com o universo das organizações criminosas, isso significa que a facção local, neste caso o BDM, a maior facção criminosa da Bahia, está “fechada”, que é a mesma coisa de “aliada”, com o TCP.
O CORREIO esteve em Santo Amaro na quarta-feira (23), um dia após uma grande operação da Polícia Militar na cidade (saiba mais abaixo). O clima ainda era tenso entre os moradores. Pouquíssimos aceitaram falar, mesmo com a garantia da preservação da identidade.
Entre inúmeras tentativas, a reportagem conseguiu falar com um senhor que teve a casa marcada com as inscrições. “Logo após a primeira semana de abril, a gente dormiu e acordou com tudo riscado. A gente ficou sabendo o que realmente se tratava, quando no mesmo dia eles (traficantes) divulgaram um vídeo mostrando as porcarias que fizeram e ainda exibiam armas para pôr medo”, disse. “Todo mundo ficou apavorado de o outro grupo chegar aqui atirando, com raiva, e por isso nos unimos e apagamos a maioria das pichações. Você percebe que a tinta é de muito tempo”, contou ele, passando a mão sobre o local, depois de fazer referência ao CV, que também atua na cidade, mas em menor proporção.
Todas as pichações estão concentradas na localidade conhecida como Ideal, fundo da igreja que leva o nome do bairro. Lá, a reportagem localizou apenas uma inscrição com mais de 50% de preservação, na Rua Campo do Ideal, onde só é possível passar um carro por vez. “Aqui sempre foi um ambiente familiar, onde todo mundo se conhece. Mas depois que essa turma chegou há um tempo e escreveu isso tudo nas paredes, ninguém mais tem paz. Basta escurecer que todo mundo fica em casa e eu nem posso conversar muito com você, porque o pessoal deles fica xeretando, principalmente quando tem alguém de fora”, disse ele, antes de encerrar a conversa.
“Dobradinha”
A aproximação entre o BDM e o TCP se deu através do traficante santamarense conhecido como Cabeça, quando há alguns anos cumpria pena em Bangu 1, no Rio. De volta a Santo Amaro, Cabeça gerencia o tráfico nos bairros de Nova Santo Amaro e Sacramento, uma das principais áreas de atuação do BDM.
Até a chegada da notícia da “dobradinha”, era sabido que o BDM tinha o apoio do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa de São Paulo e a maior do país. A relação entre as duas foi construída com o PCC fornecendo drogas e armas. Porém, não se sabe ao certo se acabou, mas o que é de conhecimento em Santo Amaro, inclusive comentado pelos próprios policiais, é que essa aliança teria sido rompida, por vários motivos.
O primeiro e mais importante seria o fato de o PCC não se estabelecer na Bahia, como fez em Sergipe, Alagoas, Ceará e Rio Grande do Norte. Desta forma, o BDM vem enfrentando grandes batalhas com o fortalecimento do CV em Salvador e sua expansão para outras cidades.
“Além do agravamento na disputa por territórios, esse Terceiro Comando Puro tem o modo de operação muito mais agressivo, mais do que o PCC. Tudo indica que o PCC tinha objetivos maiores ligados ao tráfico internacional e talvez não tivesse dando a assistência que o BDM necessita”, avaliou o especialista em segurança pública, o coronel Antônio Jorge, coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio FIB da Bahia.
O segundo ponto é que já havia o desejo do TCP de se fixar na Bahia, por causa da dimensão territorial, e também pela facção e o BDM terem um mesmo inimigo em comum, o CV. Mas essa perigosa “dobradinha” pode ter outro efeito. O surgimento de mais uma nova organização criminosa. “Tudo vai depender como as peças serão mexidas nesse tabuleiro. Não foi à toa que a Secretaria da Segurança Pública fez recentemente um acordo com a Polícia Federal, criando uma espécie de força-tarefa, pois a tendência é que haja um agravamento neste cenário de disputas”, comentou o coronel Antônio Jorge.
Vídeo
Um vídeo de quando as casas, muros e estabelecimentos comerciais no Ideal foram pichados com as siglas do BDM e TCP voltou a circular nas redes sociais na semana passada. “A gravação é velha. Fizeram isso agora para acabar com uma festa que iam fazer no final de semana”, disse uma moradora, alegando que o evento terminaria na manhã do dia seguinte.
Apesar de antiga, a gravação viralizou no final de semana dos dias 19 e 20 de agosto e causou temor na cidade. Dias depois, dois suspeitos foram mortos durante a Operação Aila da Polícia Militar em Santo Amaro. Com os criminosos, a polícia apreendeu pistola, revólver, coletes balísticos e R$ 4,8 mil. Os PMs realizavam incursões no bairro da Candolândia, território do BDM / TCP, quando trocaram tiros com dez homens armados.
O comandante da 20ª Companhia Independente (Santo Amaro), major Marcos Davi, nega que o motivo da operação tenha sido o vídeo, justificando que a ação já estava planejada para reprimir a criminalidade na cidade. Questionado sobre a chegada do TCP no município, ele disse não saber. “A gente acompanha a atuação do crime, essa organização que foi citada, não tenho conhecimento da atuação dela aqui na cidade, mas a Secretaria de Segurança Pública vem usando medidas para conter esse avanço do crime aqui no estado”.
Confrontado sobre a existência das siglas, que representam a aliança entre as facções, o comandante disse que “as respostas estão sendo dadas”. “Qualquer iniciativa de uma dita organização que tentar ser o estado paralelo será severamente reprimida. O exemplo maior tivemos agora e não vamos parar por aqui”, complementou, fazendo referência ao resultado da operação, que terminou com os dois homens mortos em Candolândia.
Como surgiu o TCP
A facção tem seus primórdios no extinto Terceiro Comando, atuante nas décadas de 1980 e 1990. Alguns líderes do TC naquela época eram os criminosos Zacarias Gonçalves, Zaca Jorge Zambi, Pianinho, Pitoco da Vila Aliança, Robertinho de Lucas, Adilson Balbino, dentre outros.
Em 1998, o Terceiro Comando aliou-se à facção recém-criada Amigos dos Amigos (ADA), ampliando seus domínios. Por volta de 2002, o TCP surgiu a partir de uma dissidência do TC, chegando a coexistir com esta última e o ADA.
Após 11 de setembro de 2002, quando Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, liderou uma revolta no presídio Bangu I, matando alguns rivais, entre eles Uê, um dos líderes da união TC/ADA, Celsinho da Vila Vintém, da facção ADA, que não foi morto durante a rebelião, foi acusado de traição, o que gerou o rompimento definitivo da aliança com o ADA. Assim, os traficantes do quase extinto TC pularam para o TCP e outros para o ADA. Foi nessa cisão que os integrantes da facção decidiram colocar o P de Puro na sigla da facção, realçando que os que continuaram no Terceiro Comando eram criminosos “puros” e “sem mistura”.
Após a morte de Robinho no final de 2007, quem se tornou o primeiro homem na hierarquia de Senador Camará, bairro da Zona Oeste carioca, foi o traficante Marcio José Sabino, mais conhecido como Matemático, que assumiu o controle de seus postos de venda de droga até ser morto em uma emboscada em maio de 2012.
Hierarquia
Ao contrário da sua arquirrival, o Comando Vermelho, a facção Terceiro Comando Puro tem uma hierarquia descentralizada. Cada “dono” de comunidade só responde por ela, sem receber interferências de outros líderes da cúpula da facção. O TCP não tem uma hierarquia definida e nem um alto conselho para decisões da facção, e cada dono mantém seu poder na própria comunidade ou naquela comunidade em que ele ajudou a “tomar”.
No cenário de guerra, cada dono cede homens ou armamentos para a empreitada criminosa. No fim, esses donos vão ter suas “fatias” naquela comunidade caso a facção tenha êxito na empreitada.
SSP/BA
O CORREIO procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-BA) para saber como a pasta está lidando com a chegada de mais uma facção de fora na Bahia e o que está fazendo para impedir que outras não façam a mesma coisa. Perguntou também se a SSP-BA já vinha monitorando o TCP e quais as consequências que a organização criminosa pode trazer para o cenário violento do estado. A reportagem questionou ainda se a pasta teve conhecimento que uma das lideranças da facção, conhecida como Genaro, esteve em Ilhéus, no litoral sul do estado, para recrutar baianos para a organização. Até a publicação da reportagem não houve resposta.