Só é possível diferenciar pessoas assintomáticas de pré-sintomáticas retroativamente.
Uma resposta da epidemiologista Maria Van Kerkhove, da OMS (Organização Mundial da Saúde), em uma coletiva de imprensa gerou confusão nesta semana sobre se pessoas sem sintomas de coronavírus transmitem a doença.
Van Kerkhove, que coordena a resposta da organização à pandemia de covid-19, disse na segunda que era “muito raro” que pessoas realmente assintomáticas transmitissem a doença, o que gerou confusão no público e respostas de epidemiologistas no mundo todo dizendo que a fala foi mal colocada.
Devido à confusão, na terça Van Kerkhove fez uma transmissão ao vivo em que esclareceu a questão: ainda não se sabe qual a porcentagem da transmissão de coronavírus é feito por pessoas assintomáticas.
Há evidências que sugerem que pessoas com sintomas são mais infecciosas, mas a doença pode ser transmitida antes dos sintomas começarem a desenvolver.
Parte da confusão se deu porque a fala inicial de Van Kerkhove não deixou claro a divisão que a comunidade científica e a própria OMS fazem entre as pessoas contaminadas.
Existem três tipos de situações em relação aos sintomas:
Pessoas com sintomas – pessoas que têm diagnóstico positivo para o vírus e apresentam sintomas como tosse, febre, falta de ar;
Pessoas pré-sintomáticas – pessoas que estão com o vírus e ainda não apresentaram os sintomas, mas nas quais esses sintomas vão aparecer mais para frente;
Pessoas assintomáticas – pessoas que estão com o vírus e não apresentam sintomas em nenhum momento da infecção.
Pessoas sem sintomas podem tanto ser pré-sintomáticas (que ainda não desenvolveram sintomas) quanto assintomáticas (que nunca terão sintoma nenhum). Mas essa diferenciação é muito difícil de fazer, porque não há como saber se a pessoa vai desenvolver os sintomas no futuro ou não explica Natália Pasternak, pesquisadora da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.
“Enquanto as pessoas estão doentes, não é possível diferenciar assintomáticos verdadeiros de pré-sintomáticos, é algo que só pode ser feito retroativamente, ou seja, depois que a pessoa já foi curada”, diz Pasternak.
Além disso, segundo a OMS, quando se analisa mais detalhadamente muitos dos relatos de pessoas contaminadas e sem sintomas, percebe-se que na verdade elas tinham alguns sintomas leves que passaram despercebidos.
O quanto cada grupo transmite a doença
As evidências existentes até o momento apontam que pessoas com sintomas são mais transmissíveis. “É claro, porque elas estão tossindo e espirrando”, diz Pasternak.
Mas apontam também que pessoas pré-sintomáticas (ou seja, pessoas sem sintomas mas que vão desenvolvê-los no futuro) têm cargas virais tão altas quanto de quem tem sintomas, e estão sim transmitindo o vírus, explica a bióloga.
Segundo o infectologista Babak Javid, da Universidade Cambridge, há muitas evidências que mostram grandes quantidades de vírus no sistema de pessoas contaminadas poucos dias de elas começarem a ter sintomas, o que as torna capazes de espalhar a infecção nesse período – especialmente no dia anterior ao dia em que os sintomas aparecem.
Quanto às pessoas verdadeiramente assintomáticas (que nunca desenvolverão os sintomas), ainda não existem pesquisas suficientes para afirmar com certeza o quão transmissíveis elas são, segundo esclarecimento da própria OMS na terça.
O posicionamento oficial da OMS explica que uma revisão sistemática recente da literatura científica mostra que os casos assintomáticos poderiam variar entre 6% e 41% dos casos de contaminação, ou seja, ainda há grande incerteza sobre qual a proporção de casos assintomáticos entre os contaminados.
Além disso, diz a OMS, “a maioria dos estudos incluídos nessas revisão tinham importantes limitações quanto ao relatos dos sintomas, ou não definiram propriamente quais sintomas estavam sendo investigados”.
“Vírus viáveis (que podem contaminar outras pessoas) foram isolados tanto em pessoas pré-sintomáticas quanto em pessoas assintomáticas, o que sugere que pessoas sem sintomas podem, sim, transmitir o vírus para outras”, diz a nota técnica da OMS.
Depois da fala inicial de Van Kerkhove, a OMS esclareceu que ela se referia a pessoas realmente assintomáticas, e não a pessoas pré-sintomáticas. E que o comentário se baseava em algumas observações feitas em países que tiveram um monitoramento intenso de pessoas contaminadas e de seus contatos — Van Kerkhove disse que é ainda uma questão em aberto se isso poderia de fato ser comprovado em estudos científicos mais aprofundados.
Eles precisariam acompanhar um grande número de pessoas durante um longo tempo, para conseguir diferenciar quem de fato foi assintomático durante toda a infecção, depois medir sua carga viral e verificar se os vírus são viáveis (ou seja, se não foram desativados pelos anticorpos das pessoas, tornando-os incapazes de contaminar outras).
Somente com estudos como esses, diz a bióloga, vai haver certeza quanto à possibilidade de pessoas assintomáticas transmitirem ou não o vírus.
Mas mesmo quando os estudos forem feitos, diz Pasternak, nada vai mudar quanto à necessidade de medidas de isolamento. Isso porque, na prática, é impossível diferenciar entre pessoas pré-sintomáticas e pessoas verdadeiramente assintomáticas enquanto elas ainda estão doentes.
Ou seja, mesmo que se descobrisse que pessoas assintomáticas não transmitem e o país conseguisse fazer o rastreamento de todos os contaminados, ainda assim seria preciso manter as medidas de isolamento, porque é impossível saber se os indivíduos contaminados e sem sintomas são de fato assintomáticos ou se vão desenvolver sintomas no futuro.
A OMS deixou claro que suas orientações quanto à importância das medidas de quarentena e isolamento social continuam as mesmas.
“As incertezas envolvidas enfatizam a importância das medidas de lockdown (fechamento total de todas as atividades não essenciais) para reduzir massivamente o número de pessoas infectadas”, diz o epidemiologista Liam Smeeth, da Universidade de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
“Toda essa confusão foi devido à uma falha na comunicação da OMS, em que a epidemiologista se expressou mal. Muitas vezes os cientistas não têm esse treinamento para falar em público”, diz Pasternak, cujo instituto é focado em divulgação científica.
“Além disso, nada disso é novo. Não foi uma declaração oficial da OMS anunciando algo, foi uma resposta a uma pergunta em que ela se expressou mal quando estava se referindo ao documento da entidade sobre uso de máscaras.”
“O fato de que pessoas com sintomas têm maior chance de transmitir, mas que pessoas sem sintomas transmitem também é puro consenso. Van Kerkhove estava enfatizando a importância de focar o rastreamento nas pessoas com sintomas e em seus contatos”, afirma a bióloga.
“Porque muitos países não têm condições de ficar testando todo mundo e acompanhando. Como os recursos são escassos, é mais importante focar o acompanhamento nos sintomáticos. Não muda nada nas diretrizes sobre isso ou sobre isolamento social.”
*com informações de Rachel Schraer, da BBC News.