Chegar ao supermercado e se sentir perdida em seus corredores – e totalmente incapaz de decidir qual macarrão levar. Foi assim que a empreendedora Rafaela Cappai, de 40 anos, percebeu que algo sério acontecia. “Foi o ápice da confusão mental. Resultado de toda a pressão que eu me colocava. Toda a minha energia era só voltada para o trabalho. Aquilo foi criando um casulo”, disse. “Eu continuava ‘entregando’ (resultados), mas estava deprimida, cínica, pessimista, engordei 30 kg e tinha dificuldade para delegar tarefas.”
O que Rafaela teve foi um esgotamento profissional, a síndrome de burnout – que será incluída na próxima revisão da Classificação Internacional de Doenças, segundo anúncio feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta segunda-feira, 27. A lista, elaborada pelo órgão, tem por base as conclusões de especialistas de todo o mundo. A classificação é utilizada para estabelecer tendências e estatísticas de saúde. A nova versão da CID começa a valer em 2022.
Segundo pesquisa da Isma-BR (representante da International Stress Management Association), 72% dos brasileiros que estão no mercado de trabalho sofrem alguma sequela ocasionada pelo estresse. Desse total, 32% sofreriam de burnout. E 92% das pessoas com a síndrome continuariam trabalhando.
“Embora o burnout represente um nível exacerbado de estresse, as pessoas continuam em seus postos de trabalho pelo medo do desemprego. Um trabalhador nesse estado está mais propenso a cometer erros graves”, comentou a psicóloga e presidente do Isma-BR, Ana Maria Rossi.
Para ela, a decisão da OMS terá um efeito prático. “Pode dar um embasamento maior para os juízes decidirem questões trabalhistas relacionadas com a saúde mental.”
O burnout foi incluído no capítulo de “problemas associados” ao emprego ou ao desemprego e descrito como “uma síndrome resultante de um estresse crônico no trabalho que não foi administrado com êxito”.
Ele se caracteriza por três elementos: “sensação de esgotamento, cinismo ou sentimentos negativos relacionados a seu trabalho e eficácia profissional reduzida”. “Hoje (ontem, segunda-feira) foi o dia mais feliz da minha vida”, disse a jornalista Izabella Camargo, já diagnosticada com burnout. “Isso (o reconhecimento) vai trazer mais entendimento e respeito para as pessoas que estiverem passando por isso”, completou a jornalista – que teria sido demitida da emissora que trabalhava após ser diagnosticada.
A médica e escritora Renata Corrêa apresentou os diversos sintomas do burnout. “Sou oftalmologista. Trabalhava em um clínica em que eu não vi a luz do sol. Uma vez, atendi 20 pacientes das 7h às 9h da manhã”, contou. “Neste dia, quando vi quantos pacientes em ainda tinha para atender, caí no choro e não consegui mais trabalhar”, completou.
Para o especialista em recursos humanos Marcelo Braga (fundador da Reachr), a pressão nas organizações e o ritmo de trabalho tem aumentado muito. “Com o reconhecimento da síndrome, os departamentos de RH vão precisar entender mais do tema. E contribuir para mudar essa cultura de que estresse oriundo do trabalho é apenas frescura”, completou.
O diretor dos ambulatórios do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), Rodrigo Martins Leite, disse que o reconhecimento da OMS deve representar uma mudança de cultura mesmo entre os profissionais. “Há 12 anos, tentei fazer uma pós-graduação em burnout, mas não pude porque a psiquiatria não aceitava esses diagnósticos.”
Perguntas e respostas
1.O que é burnout?
É um quadro de esgotamento profissional caracterizado por três sinais clássicos: 1) esgotamento físico e psíquico (a sensação de não dar conta das tarefas); 2) indiferença e perda de personalidade (não se importar mais com o próprio desempenho profissional, cinismo e apatia); e 3) Baixa satisfação profissional. Para além desses sintomas, podem aparecer sintomas físicos, como ressalta a coordenadora do Serviço de Psicologia e Experiência do Paciente do Hospital Israelita Albert Einstein, Ana Merzel Kernkraut. “Os primeiros sintomas podem ser físicos, como dor de cabeça, dor de coluna e distúrbios musculares.”
2.Quais são as causas?
O quadro está sempre associado a fatores de estresse crônicos no ambiente de trabalho, como longas jornadas, pressão e alta competitividade, entre outros. Segundo o Ministério da Saúde, a síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, dentre outros. “Não é algo que acontece após um ou outro dia de trabalho estressante. É um quadro que vem de uma rotina constante de estresse ao longo da vida profissional”, explica João Silvestre da Silva Junior, diretor da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamat) e perito médico do INSS.
3. Que outros sintomas podem aparecer?
De acordo com o Ministério da Saúde, são sintomas do burnout cansaço excessivo (físico e mental), dor de cabeça frequente, alterações no apetite, insônia, dificuldades de concentração, sentimentos de fracasso e insegurança, negatividade constante, sentimentos de derrota e desesperança, sentimentos de incompetência, alterações repentinas de humor, isolamento, fadiga, pressão alta, dores musculares, problemas gastrointestinais e alteração nos batimentos cardíacos.
4. Quantas pessoas são atingidas no Brasil?
Não há dados precisos sobre isso, mas, segundo a representação brasileira da Associação Internacional de Manejo do Estresse (ISMA), 72% dos brasileiros que estão no mercado de trabalho sofrem alguma sequela ocasionada pelo estresse. Desse total, 32% sofreriam de burnout. De acordo com João Silvestre da Silva Junior, diretor da Associação Nacional de Medicina do Trabalho e perito médico do INSS, cerca de 20 mil brasileiros pedem afastamento médico por ano por doenças mentais relacionadas ao trabalho.
5. Como tratar o burnout?
O tratamento da síndrome é feito principalmente com psicoterapia mas também pode envolver medicamentos (antidepressivos e/ou ansiolíticos). Em alguns casos, o tratamento requer afastamento temporário do emprego e também mudanças nas condições de trabalho.
6. Como é possível prevenir a doença?
Algumas condutas reduzem o risco, como negociar limites de trabalho e de jornada com o empregador e dedicar-se a outras atividades além do trabalho, como exercícios físicos, relacionamentos familiares, atividades de lazer, entre outras. Também é importante evitar jornadas excessivas com frequência, alimentar-se bem e tentar dormir cerca de oito horas diárias. (Com agências internacionais).